O “eu hoje” e o “eu futuro”

Como lidar com os lapsos da irracionalidade

Como lidar com os lapsos da irracionalidade

Você deve pensar que antecipar movimentos competitivos se refere a prever as ações dos outros (concorrente, colega de trabalho, etc). Não necessariamente, você pode querer antecipar suas próprias ações.

Thomas Schelling, no livro Strategies of commitment and other essays, apresenta um cenário bem interessante para ilustrar como decisões racionais no presente podem prevenir ações irracionais no futuro, o que ele chamou de lapsos de racionalidade.1

Imagine um homem que deixou de fumar há três meses. Durante as oito primeiras semanas ele foi atormentado por um constante desejo de fumar, mas as últimas quatro semanas foram mais confortáveis, o que o deixou otimista quanto ao sucesso de sua empreitada. Numa tarde de domingo, um amigo apareceu na casa dele, sem avisar, para uma conversa de negócios. Após o bate-papo, o amigo foi embora. Quando nosso “fumante recuperado” voltou à sala, encontrou um maço de cigarros aberto na mesa do café. Pegou o maço e correu até a porta, mas o carro do seu amigo já tinha desaparecido na esquina.

Como ele iria encontrar o amigo na manhã seguinte, guardou o maço no bolso da jaqueta e a pendurou no quarto; assim poderia devolver os cigarros. Em seguida, ele foi para a frente da televisão com uma bebida. Vinte minutos de televisão depois, ele voltou ao quarto, tirou os cigarros do bolso da jaqueta e estudou o maço durante um minuto. Daí decidiu ir até o banheiro, esvaziar os cigarros no vaso sanitário e dar descarga. Então voltou à bebida e à televisão aliviado.

O que acabamos de testemunhar? Poderíamos dizer que o nosso sujeito antecipou que, na presença dos cigarros, algo que ele não gostaria poderia ocorrer. Então jogou fora os cigarros para se prevenir. Desperdiçar alguns reais em cigarros do amigo foi uma proteção barata.

No momento em que jogou os cigarros fora, ele lidou racionalmente com o risco de fazer algo que não queria fazer. Podemos interpretar o ato desse homem como uma tentativa racional de prevenir um comportamento não ótimo que a presença do maço poderia motivar. Ele poderia explicar aquele comportamento como a antecipação de algum ato irracional enquanto ainda pensava racionalmente.

Perceba como as pessoas programam estratégias de limitar o próprio comportamento futuro: muitas vezes o modo como elas restringem as próprias atitudes parece ser o mesmo que fazem para restringir o comportamento de outras pessoas. Nesse caso, parecem tratar o “eu futuro” como se fosse “outro indivíduo”. Por exemplo, se a esposa do nosso homem estivesse numa batalha para parar de fumar, e o seu amigo de negócios tivesse deixado cigarros na casa deles, ele certamente iria se desfazer dos cigarros antes que a esposa voltasse para casa. Assim, dizer que ele trata a “sua personalidade futura” como se fosse “outro ele mesmo”, ou “o outro alguém”, faz pouca diferença.

A maior parte da literatura sobre esse tema em Economia e Filosofia descreve a situação como uma modificação das preferências ao longo do tempo. Imagine

  • Às cinco horas o homem não quer fumar.
  • Às cinco horas ele não quer fumar às dez.
  • Às dez horas ele quer fumar, mesmo lembrando-se perfeitamente bem de que há cinco horas ele não queria que ele fumasse às dez e que há três meses ele não queria fumar em nenhum momento.

Não é fácil descrever por que o homem acenderia o cigarro se alguns momentos antes ele esperava não fumar. É racional que ele satisfaça o impulso de fumar, exercendo sua soberania, às dez horas? Essa é uma pergunta que não pode ser respondida pela teoria clássica de escolha racional. Esse homem até poderia se referir ao seu lapso como irracional, se assim quiser chamá-lo; pelo menos assim lhe parece às cinco horas. Neurologicamente pode haver uma resposta, mas nessa avaliação é difícil dizer se sucumbir às dez horas poderia ser julgado racional, irracional ou um “lapso de racionalidade”, como prefere chamar Schelling.

De qualquer modo, na hora de prever os movimentos dos adversários (ou nossos), devemos reconhecer que as mudanças de preferência ao longo do tempo existem de fato e considerá-las, quando apropriado, da mesma maneira como devemos entender os reais incentivos e motivações das pessoas. Chamar de racional, irracional, lapso de racionalidade ou mudança de preferência ao longo do tempo, pouco importa. É preciso entender esse fenômeno para poder aprimorar o pensamento estratégico.

Curioso?

Se você gostou do assunto, talvez se interesse por um outro exemplo sobre \”limitar suas próprias ações\” como uma forma de sinalização crível em Ameaças críveis e navios queimados.


REFERÊNCIAS:
[ 1 ] SCHELLING, T. C. Strategies of commitment and other essays. Harvard University Press, 2007 — link