Estudos sugerem que o idioma molda a forma como as pessoas interpretam a realidade
À medida que a inteligência artificial permeia nossas vidas, surgem questões sobre o impacto dessa tecnologia na educação e na comunicação humana. A evolução das ferramentas de tradução automática tem sido particularmente disruptiva para o aprendizado de línguas estrangeiras, levantando a dúvida: será que, no futuro, o estudo de línguas se tornará desnecessário?
A jornalista Louise Matsakis, em “The End of Foreign-Language Education“, publicado no The Atlantic, trás luz a essa discussão. Ela própria utiliza o software da startup HeyGen, com o qual criou um vídeo de si mesma falando chinês fluentemente, um feito notável dada a sua falta de fluência no idioma. Esse episódio introduz uma discussão mais ampla sobre o progresso da IA. As melhorias nas traduções automáticas, impulsionadas por redes neurais e machine learning, têm sido tão significativas que até mesmo ferramentas como o Google Translate parecem obsoletas em comparação. Esta evolução tecnológica não apenas fascina, mas também levanta dúvidas sobre a utilidade de dedicar anos ao estudo de uma língua estrangeira.
Dados recentes revelam uma tendência alarmante: a diminuição do número de estudantes matriculados em cursos de línguas estrangeiras nos Estados Unidos e em outros países. Segundo a Modern Language Association (MLA), houve uma queda de 29,3% nas matrículas em cursos de idiomas que não o inglês nas faculdades americanas, de 2009 a 2021. A Austrália reportou um recorde histórico de baixa, com apenas 8,6% dos alunos do último ano do ensino médio estudando uma língua estrangeira em 2021. A mesma tendência é observada na Coreia do Sul e na Nova Zelândia, onde departamentos de francês, alemão e italiano estão sendo fechados nas universidades. Um estudo da EF Education First ainda indicou uma diminuição na proficiência em inglês entre os jovens em alguns locais.
Muitos fatores podem contribuir para explicar essa tendência de queda, incluindo interrupções escolares devido à pandemia, crescente isolacionismo e cortes de financiamento em programas de humanidades. Mas, seja a causa da mudança política, cultural ou uma combinação de fatores, é evidente que as pessoas estão se distanciando do aprendizado de idiomas à medida que a tradução automática torna-se onipresente na internet.
Em poucos anos, a tradução automática por IA pode tornar-se tão comum e sem atritos que bilhões de pessoas poderão começar a considerar como garantido o fato de que os e-mails que recebem, os vídeos que assistem e as músicas que ouvem foram originalmente produzidos em um idioma que não o seu. A integração de ferramentas de IA na tradução e geração de voz agora se estende a aplicativos de redes sociais, plataformas de mensagens e sites de streaming. Empresas como Spotify e Samsung estão experimentando com ferramentas de geração de voz para traduzir conteúdo na própria voz do apresentador ou realizar traduções de chamadas telefônicas em tempo real. Até mesmo o Roblox afirma que sua ferramenta de tradução de IA é tão rápida e precisa que os usuários de língua inglesa podem não perceber que seu interlocutor “está, na realidade, na Coreia”.
Os malefícios da IA na tradução automática
Embora essa conveniência seja inegável, algo significativo pode estar sendo perdido nesse processo. Estudos sugerem que o idioma molda a forma como as pessoas interpretam a realidade; aprender uma língua diferente ajuda as pessoas a descobrir novas maneiras de ver o mundo. Esse processo de descoberta, intrinsecamente humano, não pode ser replicado por máquinas. O uso crescente da tradução automática em produtos tecnológicos ameaça substituir conexões humanas profundas por formas de comunicação que, embora tecnicamente proficientes, são fundamentalmente desprovidas de significado.
Além disso, a maioria dos estudantes provavelmente nunca alcançará a fluência necessária para julgar se uma tradução aproxima-se suficientemente do original. Isso levanta preocupações sobre o futuro do ensino de línguas, sugerindo uma necessidade de desviar o foco dos exercícios gramaticais para o desenvolvimento da competência cultural e a compreensão das crenças e práticas de diferentes povos. Em vez de reduzir os cursos de línguas em resposta à IA, as escolas deveriam enfatizar ainda mais os componentes interculturais do aprendizado de línguas, que oferecem benefícios imensuráveis aos estudantes.
A autora ilustra essa preocupação ao citar um episódio de 1991 de “Star Trek: The Next Generation”, chamado “Darmok”. Nesse episódio, a tripulação a bordo da nave estelar Enterprise luta para se comunicar com alienígenas no planeta El-Adrel. Eles têm acesso a um “tradutor universal” que permite compreender a sintaxe básica e semântica do que os Tamarianos dizem, mas o significado mais profundo de suas expressões permanece um mistério. Revela-se mais tarde no episódio que a linguagem deles baseia-se em alegorias enraizadas na história e práticas únicas dos Tamarianos. Mesmo que o Capitão estivesse traduzindo todas as palavras que diziam, ele “não conseguia entender as metáforas de sua cultura”, ela explica. Mais de 30 anos depois, algo semelhante a um tradutor universal está sendo desenvolvido na Terra. No entanto, ele não possui a capacidade de superar divisões culturais da maneira que os humanos podem.
Diante desses desafios, é crucial reconhecer que o aprendizado de línguas oferece mais do que a habilidade de traduzir palavras; ele possibilita a construção de pontes de compreensão cultural que nenhuma tecnologia pode atravessar. À medida que navegamos nesta nova era da comunicação, devemos questionar não apenas o papel da IA, mas também como podemos integrar essas novas ferramentas de maneira a enriquecer, ao invés de substituir, a experiência humana de aprender e conectar-se através das línguas.
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Fonte: https://www.theatlantic.com/technology/archive/2024/03/generative-ai-translation-education/677883/