São vidas: sendo vidas, nada mais nos resta fazer senão irmos vivendo

Viver apeas não basta, é preciso de uma convicção

Viver apenas não basta, é preciso de uma convicção

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Neste maravilhoso trecho de uma carta de Fernando Sabino para Clarice Lispector em 1946, ele reflete sobre a imprevisibilidade da vida, a passagem do tempo e a busca por sentido. Entre a beleza e a melancolia do cotidiano, viver apenas não basta — é preciso ter uma convicção para dar significado à existência.

Clarice, sua carta chegou como uma ventania: eu estava organizando uns formulários, pilhas de papéis em cima da mesa, quando um contínuo se aproximou segurando uma carta para mim. Largou-a na minha frente, os papéis voaram. Fiquei idiota com a rapidez. 

Confesso que nunca acreditei que minha carta chegasse às suas mãos e muito menos que Seminarstrasse existisse. Mas essas coisas costumam acontecer. São vidas, como diz o Moacir Werneck, numa carta para mim. São vidas. Sendo vidas, nada mais nos resta fazer senão irmos vivendo.

Atravessei um período duro, Clarice. Também precisei muito de uma palavra amiga, e, afinal, o meu livro está ali, num canto, esperando uma resolução. Já nem sei mais nada, e às vezes tenho vontade de ir mais devagar. Viver devagar é que é bom, e entre-viver-se, amando, desejando e sofrendo, avançando e recuando, tirando das coisas ao redor uma íntima compensação, recriando em si mesmo a reserva dos outros e vivendo em uníssono.

Isso é que é viver. Viver é questão de paciência, é isso mesmo. É ir olhando e dizer: aquilo é bonito! É muito comprido, parece que vai cair e não cai. Hoje é sábado, amanhã é domingo. Aquela moça parece triste, o que há com ela? Estou tão cansado, mamãe. Ah, eu tinha um selo da Bélgica, hoje não tenho mais.

Aquele anúncio é engraçado: olha, vai acender. A gente olha, olha, e não acende nada. Depois a gente fica triste, e quando se lembra que amanhã vai ser diferente, fica mais triste ainda. A gente podia ser assim, Clarice, viver apenas, aceitar o momento como essencial e nascer de novo entre dois cigarros, entre o brinquedo e o edifício, entre a palavra e a curva.Mas é preciso saber se lá fora faz dia ou noite. Há uma criança correndo na rua, correndo, correndo, há uma bola, há um livro chegando pelo correio, um embrulho, uma carta e um passado — a vida é boa. 

Mas o olho aberto na parede nos espreita, à espera. Há um vento carregando um papel na calçada, agita a saia da mulher na esquina. A alegria salta da boca e escorre pela escada, rola no meio da rua e se perde no meio da praça. O guarda parado fica olhando, impassível, a pensar: hoje é de tarde, hoje é de tarde. Viver é isso mesmo e, afinal, ser feliz é fácil como fechar os olhos. 

Mas o olho na parede existe, nos espreita sempre, como um buraco, um mistério, uma lembrança do mundo errado possibilitando a salvação. Alguns conceitos certos dão ilusão de calma, facilidade e vitória. Por exemplo: a renovação temporal é uma busca da eternidade das coisas. Mas na verdade não há calma nenhuma, tudo é muito difícil, e afinal as palavras estão precipitando a nossa derrota. 

Porque viver apenas não basta. Não basta, não basta. É preciso uma convicção, certa ou errada, mas uma convicção, e conscientemente escrever, falar, brigar, viver por ela.