Você tem brio?

Todo mundo riu, concordou, mas não leu

Todo mundo riu, concordou, mas não leu.

Esse vídeo do Clóvis de Barros Filho já tem alguns anos e volta e meia reaparece nas redes. Eu gosto muito dele.

O professor defende que enfrentar textos difíceis, como os de Kant, é essencial para desenvolver a inteligência. Diz que o desconforto faz parte do processo, e critica quem foge do esforço. Segundo ele, ter brio é não aceitar que algo esteja além da sua compreensão — é ler até entender.

Mas um coisa de intriga. Apesar dos aplausos de quem assistiu, acho que quase ninguém fez o que ele propôs: buscar o texto de Kant e ler só os três primeiros parágrafos. Talvez seja uma contradição humana. Ou talvez uma soberba silenciosa — achar que ele estava mandando o recado para os outros, não para você.

Eu li. Confesso: é difícil pra caramba. Por isso, vou ajudar. Abaixo estão os três primeiros parágrafos. São curtos.

 1. A faculdade de desejar é a faculdade de ser, por intermédio das suas próprias representações, causa dos objectos dessas representações. A faculdade que um ser tem de agir em conformidade com as próprias representações chama-se vida.

 2. Com o desejo ou a aversão estão sempre conexionados o prazer ou o desprazer, a cuja receptividade se chama sentimento. Mas o inverso nem sempre é verdadeiro, porque pode haver um prazer que não esteja conexionado com nenhum desejo do objecto, mas com a mera representação que do objecto se faça (independentemente de existir ou não o objecto da mesma). 

 3. Em segundo lugar, nem sempre o prazer ou desprazer conexionado com o objecto que se deseja precede sempre o desejo e não deve assim considerar-se em todos os casos como causa mas também como efeito do mesmo.

Se você sentiu desconforto, parabéns. Você é normal.

Seguir, aqui está o PDF completo da Metafísica dos Costumes de Immanuel Kant.

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Uma análise possível

Vamos interpretar um pouco em outras palavras, na mesma ordem dos parágrafos.

1. Desejar é quando a gente age motivado pelas ideias que tem na cabeça. Não é o mundo que nos empurra, mas sim aquilo que imaginamos ou representamos. E viver, para ele, é justamente isso: agir guiado pelo que pensamos.

2. O desejo normalmente vem acompanhado de prazer, mas que o contrário não é sempre verdadeiro. Podemos sentir prazer apenas ao imaginar algo, mesmo sem desejá-lo ou sem que ele exista de fato.

3. O prazer não vem sempre antes do desejo. Às vezes, primeiro desejamos e só depois sentimos prazer. Então, prazer não é sempre a causa do desejo — pode ser também o efeito.

Ou seja:

Se há desejo, geralmente há prazer.
É possível sentir prazer sem desejar.
Às vezes sentimos prazer e, por isso, desejamos algo.
Às vezes desejamos algo e só depois sentimos prazer.
Há casos em que o desejo e o prazer não têm relação causal direta.

A mensagem principal, portanto, é que nossas ações e sentimentos não derivam diretamente do mundo exterior, mas da maneira como o representamos. O desejo surge dessas representações internas, o prazer pode estar ligado a elas e não aos objetos reais, e a relação entre prazer e desejo não é de causa e efeito fixo.

O que tudo isso quer dizer?

Pouco importa. O que o professor Clóvis quis dizer é que, se você não enfrenta agora a dificuldade de um texto denso, você perde uma chance. A chance de fortalecer sua inteligência, de expandir seu pensamento, de se provar para si mesmo. Ter brio é justamente não desperdiçar essa chance. Porque se você treinar hoje a leitura de textos difíceis, amanhã você lê qualquer coisa. E quem lê qualquer coisa entende qualquer conversa.