Decisões sobre o que ensinar envolvem julgamentos de valor.
Gostei tanto desse texto do Howard Gardner que copiei na íntegra.
Em conferências, tento evitar discussões desagradáveis. Mas o palestrante — um neurocientista proeminente — conseguiu me irritar. Diante de uma plateia de influentes formuladores de políticas, ele fez uma afirmação categórica: “Esta é a década do cérebro. Vamos saber o que cada região do cérebro faz e como as várias partes do cérebro trabalham juntas. E, uma vez que tenhamos esse conhecimento, saberemos exatamente como educar cada pessoa.”
Afirmações extremas geram respostas extremas. Levantando-me na plateia ao final da palestra, retruquei: “Discordo totalmente. Poderíamos saber o que cada neurônio faz e ainda assim não estaríamos um passo mais próximos de saber como educar nossas crianças.”
Após a sessão, engajei o palestrante em uma discussão. Comecei pedindo um exemplo do que ele estava afirmando. Ele imediatamente citou o ensino de línguas: “Agora sabemos que as crianças absorvem padrões com facilidade, especialmente os padrões de linguagem, quando são pequenas. Portanto, deveríamos ensinar línguas estrangeiras às crianças nos primeiros anos de vida.”
“Não estou convencido“, respondi. “Em primeiro lugar, todos (e as avós de todo mundo) sempre souberam que as crianças pequenas aprendem línguas — e, em particular, acentos — com facilidade. Não precisávamos de estudos sobre o cérebro para nos dizer isso. Em segundo lugar, algumas pesquisas sugerem que os militares sabem como ensinar línguas de forma muito mais eficaz do que pais e avós.”
Continuei: “Mas esse não é o meu ponto principal. Estou argumentando que as decisões sobre o que ensinar, quando ensinar e até como ensinar envolvem julgamentos de valor. Essas decisões nunca podem ser ditadas apenas pelo conhecimento sobre o cérebro. Afinal, se as crianças aprendem padrões bem quando são jovens, isso seria um argumento igualmente válido para ensiná-las matemática, música, xadrez, biologia, moralidade, civilidade e uma centena de outras coisas. Por que as línguas estrangeiras deveriam ter prioridade? Nunca se pode ir diretamente do conhecimento sobre o funcionamento do cérebro para o que deve ser ensinado na primeira série na manhã de segunda-feira. E as decisões sobre o ensino de línguas podem muito bem diferir — e com razão — dependendo de se viver na Suíça, Singapura, Islândia ou Irlanda.”
E assim nossa discussão chegou ao fim. Não acho que convenci o palestrante e admito, em retrospecto, que exagereium pouco no meu argumento. Acho o estudo do cérebro — e seu primo próximo, o estudo da mente — fascinante; eu seria a última pessoa a questionar sua importância para a sociedade como um todo e para aqueles que se interessam pela educação das futuras gerações.
Mas meu ponto central permanece. A educação é importante demais para ser deixada apenas para o professor da sala de aula, o conselho escolar, o ministério central, a comunidade neurocientífica ou qualquer outro indivíduo ou grupo isolado. No final das contas, as decisões sobre educação são decisões sobre objetivos e valores; essas decisões devem ser tomadas pela comunidade informada como um todo, e não por um setor privilegiado — mesmo que esse setor tenha a sorte de estar desvendando alguns dos mistérios da mente humana.
Queremos educar os jovens para que possam lidar com um mundo que já mudou drasticamente e que continua mudando em um ritmo ainda mais acelerado. Para que a comunidade possa tomar decisões informadas, devemos considerar o que foi aprendido sobre os seres humanos pela psicologia (o estudo da mente), biologia (o estudo do cérebro e dos genes) e antropologia (o estudo das diferentes culturas). De fato, em uma era de avanços científicos contínuos, seria irresponsável ignorar essas fontes de informação— e igualmente irresponsável considerar apenas uma delas, excluindo as demais.
Fonte: Howard Gardner, capítulo 4 Perspectives of Mind and Brain, em Disciplined Mind, 1999