A vida exige a disposição de conviver com a dúvida.
Na era da TV aberta, era comum chegar a um filme já em andamento, sem escolha de horário ou ponto de partida. Você ligava a televisão e se deparava com uma cena em curso — alguém chorando, alguém fugindo — sem saber o que tinha vindo antes. Ainda assim, assistia até o fim. E, nesse gesto aparentemente banal, fazia algo importante: deduzia o contexto, inventava causas, preenchia lacunas. Era preciso montar a história de trás pra frente, só com os pedaços disponíveis. E, curiosamente, não saber tudo desde o começo não atrapalhava — tornava a experiência até mais interessante e criativa.
Com os livros, a lógica parece ser o contrário: existe uma ordem clara, quase sagrada, que pede para começarmos pelo início. Romances são construídos com cuidado — os personagens são apresentados aos poucos, os capítulos seguem uma sequência — e sair disso parece uma violação. Ninguém começa pela página 40 sem motivo. Talvez porque, na leitura, ainda temos a sensação de que estamos no controle: achamos que só vamos entender o final se soubermos como tudo começou, como se a história só fizesse sentido se fosse seguida do jeito certo.
Na vida, ao contrário dos livros, ninguém nos oferece o primeiro capítulo. Conhecemos as pessoas no meio do caminho, já marcadas por histórias que não vimos, feridas que não sabemos de onde vieram, escolhas que parecem sem sentido. Cada relação humana é como entrar numa história em andamento: tentamos entender os sinais, interpretar os silêncios, captar o que ficou subentendido. Sem essas hipóteses improvisadas, não conseguimos lidar com a complexidade do outro. E, por mais que perguntemos ou escutemos, sempre haverá uma parte da história que permanecerá inacessível.
Então, já pensou, por curiosidade, em começar um livro na página 40? Pode parecer absurdo, mas esse gesto carrega um desafio filosófico: abrir mão do conforto da ordem e explicação que o começo oferece. Ler um romance fora de ordem, então, vira um experimento: exige interpretar sem base e aceitar o caos antes da clareza. Esse esforço talvez revele algo mais verdadeiro sobre o tempo e as relações humanas. Começar no meio é mais fiel à experiência real.
Ao começar uma história pelo meio, o leitor se torna algo mais do que espectador: vira coautor. Precisa imaginar o que veio antes para dar sentido ao que tem diante de si, criando um passado plausível, mesmo que inventado. E, se em algum momento decide voltar ao início, é para confrontar suas hipóteses com os fatos. Como na vida, conhecemos pessoas sem saber seus primeiros capítulos — e só mais tarde ouvimos fragmentos do que veio antes.
A vida exige interpretação constante e a disposição de conviver com a dúvida. A beleza talvez esteja justamente nisso: em construir significado sem ter acesso a todas as informações. Em amar pessoas cujos primeiros capítulos nunca lemos. E continuar, mesmo sem saber como tudo começou.