Na economia de mercado, a sociedade também deveria promover virtudes cívicas e morais
A tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul é grave, e será necessário muito dinheiro para a reconstrução. O presidente Lula afirmou: “Não haverá impedimento da burocracia para que a gente recupere a grandeza deste estado“. A declaração foi uma resposta às preocupações do governador Eduardo Leite sobre a difícil situação financeira do estado, agravada por dívidas de longa data com a União, que já comprometem a operação do estado mesmo em tempos de normalidade, o que se intensifica em situações de crise.
É correto que precisamos agir o mais rápido possível em todas as frentes, seja na construção civil, na distribuição de alimentos ou no fornecimento de vestuário. Por outro lado, essa declaração de agilidade provoca sentimentos ambíguos. Sabemos que, no modelo tradicional de licitações, não são raras as irregularidades e a corrupção, assim como o inflacionamento de preços. Agora, com a promessa de “sem burocracia” e dinheiro rápido e livre, as preocupações aumentam.
Esse cenário faz lembrar o capítulo 1 do livro “Justiça: O que é fazer a coisa certa“, de Michael Sandel, onde ele explora dilemas éticos e econômicos semelhantes. Após o furacão Charley devastar a Flórida em 2004, resultando em prejuízos significativos e na perda de vidas, surgiram relatos de comerciantes e prestadores de serviço elevando drasticamente os preços de itens essenciais e serviços necessários para a recuperação e sobrevivência.
Por exemplo, o preço dos sacos de gelo subiu de dois dólares para dez dólares. Com a falta de energia elétrica, que desativou refrigeradores e ar-condicionados durante o calor de agosto, muitos residentes não tinham outra opção senão pagar o preço elevado. Além disso, um prestador de serviço cobrou 23 mil dólares para remover duas árvores de um telhado, um valor considerado exorbitante e oportunista pelos moradores. Os preços dos pequenos geradores também subiram, de $250 para $2,000, e os quartos de motel que normalmente custavam $40 por noite foram oferecidos por $160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com seu marido idoso e sua filha com deficiência.
Esses aumentos geraram indignação entre os consumidores e a mídia. A expressão “Depois da tempestade vêm os abutres” foi usada para descrever a situação, refletindo a percepção de que alguns estavam tentando se aproveitar das adversidades enfrentadas por outros. Um morador expressou que era errado as pessoas “tentarem capitalizar à custa das dificuldades e da miséria dos outros”. Esse sentimento foi ecoado por Charlie Crist, então procurador-geral da Flórida, que se mostrou chocado com a ganância de aproveitar-se de pessoas em situação de sofrimento. Em resposta aos preços abusivos, o gabinete do procurador-geral da Flórida recebeu mais de duzentas reclamações, e algumas ações judiciais foram bem-sucedidas. Por exemplo, um Days Inn em West Palm Beach teve que pagar $70,000 em multas e restituições por cobranças excessivas. Essa reação foi apoiada por leis estaduais contra preços abusivos, refletindo uma rejeição institucional e social à prática.
Por outro lado, alguns economistas, como Thomas Sowell, defenderam que os preços elevados não eram injustos, mas sim reflexos naturais do valor que compradores e vendedores atribuem às coisas em situações específicas. Sowell argumentou que o termo “extorsão” é economicamente sem sentido e que os preços altos, apesar de incômodos, são determinados pela oferta e demanda. Ele acreditava que preços mais altos para itens essenciais como gelo e água engarrafada são benéficos, pois limitam o consumo e incentivam empresas de outras regiões a fornecerem mercadorias e serviços necessários, ajustando-se às circunstâncias extremas para melhor atender à demanda elevada. Jeff Jacoby, comentarista econômico, também criticou as leis contra preços abusivos, argumentando que interferir no mercado é contraproducente e prejudica a recuperação, desincentivando a oferta de bens e serviços essenciais.
Sandel utiliza esse debate sobre preços para questionar os princípios tradicionais de justiça e as leis que os sustentam. Ele contrapõe a noção histórica de um “preço justo”, baseado em valores intrínsecos e tradições, à lógica moderna de mercado, onde os preços são determinados pela oferta e demanda. Em contextos de crise, Sandel questiona se deveria haver intervenção legal para proteger os cidadãos de explorações econômicas em momentos de desespero. Por fim, ele propõe que a sociedade não deveria se focar apenas no bem-estar material, mas também promover virtudes cívicas e morais, especialmente em tempos de necessidade, provocando uma reflexão sobre como valores e ética podem guiar as políticas econômicas para criar uma sociedade mais justa e ética.
A preocupação com a situação no Rio Grande do Sul pode parecer precipitada, mas, considerando como surgem aproveitadores em tempos de crise, tanto entre particulares quanto no governo, é crucial manter vigilância e ampliar o debate. Por exemplo, observei publicações no LinkedIn que solicitam doações via PIX, assegurando que determinada instituição é confiável e não desviará os recursos. Infelizmente, a existência desse tipo de comentário já indica uma falta de confiança.
Em meio às adversidades, algumas ações práticas têm contribuído para mitigar o impacto da crise. As operadoras de telefonia, por exemplo, implementaram bônus de internet para garantir que os afetados mantenham acesso à comunicação e informações essenciais. Esta medida visa facilitar a coordenação de esforços de resgate e apoio, permitindo que os moradores se mantenham informados e conectados durante esse período desafiador. Uma esperança.
Link do livro do Sandel que citei: https://www.amazon.com.br/Justiça-fazer-coisa-Edição-especial/dp/6558020459/