Conheça os outros dilemas sociais
Para um completo entendimento deste artigo, sugiro ler o artigos introdutórios a esse tema: O Dilema dos Prisioneiros e Como induzir a cooperação.
Vimos o Dilema dos Prisioneiros num jogo com dois jogadores (duas pessoas ou duas empresas), mas seu raciocínio básico pode ser aplicado em situações que envolvem múltiplos personagens. Nesse caso, entram em cena a tragédia dos comuns, os free riders e todos os demais dilemas sociais.
Tragédia dos comuns e os free riders
Além do Dilema dos Prisioneiros, outra poderosa história‑modelo com características similares é a tragédia dos comuns. Len Fisher, no livro Rock, paper, scissors: game theory in everyday life, explica a origem desse nome. O termo tragedy of the commons (commons no sentido de “público”) foi cunhado pelo ecologista e teórico de jogos Garrett Hardin numa publicação de 1968. Hardin ilustrou o problema usando a parábola do grupo de pastores que tinha seus animais numa terra pública. Cada pastor pensava em adicionar um animal ao seu rebanho com o seguinte raciocínio: um animal extra proporcionaria um lucro também extra, e, no geral, a pastagem diminuiria somente um pouquinho. Então, parecia perfeitamente lógico aos pastores adquirir um animal extra. A tragédia ocorreu quando todos os outros pensaram da mesma maneira. Quando todos adicionaram um animal, a terra se tornou superpopulosa e em breve não havia pasto suficiente para todos.
Com esse raciocínio (“apenas o meu não faz diferença”), Fisher brinca que a Teoria dos Jogos explica por que colherinhas de café gradualmente desaparecem das áreas comuns de escritórios. Tecnicamente falando, os usuários de colheres tomam decisões considerando que a utilidade deles (ou seja, os seus próprios benefícios) cresce bastante ao pegar uma colher para uso pessoal, enquanto a utilidade de todos os demais colegas diminui uma pequeninha fração per capita (afinal, há um monte de colheres). Mas, à medida que todos tomam a mesma decisão, todas as colheres desaparecem!
Basta fazer a analogia das colheres para qualquer outro recurso para observar que sérios problemas globais têm como origem o mesmo círculo vicioso dessa lógica de pensamento. O benefício individual causa grande custo para a comunidade envolvida. A tragédia dos comuns exerce seu poder destrutivo quando alguns colaboraram para o benefício do grupo, mas outros percebem que poderiam se sair melhor ao “quebrar” a cooperação.
Se eu jogar papel no chão, meu pedacinho não fará muita sujeira, mas se todos jogarem, as ruas ficam atoladas de lixo. Essa é a essência do free rider (em português poderíamos chamar de “caronista”). O free rider se beneficia ao não colaborar; está sempre pegando carona “nas costas” dos que colaboram. Em um modelo de condomínio, no qual a água do prédio é dividida de forma igual para todos os apartamentos, se eu gastar um pouco mais, não pagarei pelo meu consumo, rateado por todos os 40 condôminos. É por isso que a tendência dos edifícios mais modernos é possuir medidor individual para cobrar o consumo exato de cada unidade.
Dividindo a conta de um restaurante
Um caso típico de divisão de recursos comuns ocorre no pagamento de uma conta de restaurante. Em um sistema de serviço individual, no qual cada convidado escolhe seu prato, um método tradicional de divisão é repartir a conta em partes iguais, independentemente da quantidade consumida. Sabemos que cada prato tem um preço diferente – há pratos caros e baratos. Além disso, alguns pedem entrada e outros não, alguns comem somente salada, outros pedem sobremesa. Alguns pedem bebidas caras e outros, apenas suco. E assim vai. Na hora de dividir, alguns vão pagar mais, e outros, menos, se comparado com o valor exato consumido. Os defensores da divisão igualitária argumentam que separar os valores individuais dá muito trabalho (anotações em papel, calculadora, gorjeta proporcional), além de ser indelicado. Algumas pessoas falam: “Sentou, sorriu, dividiu” para mencionar que a conta será dividida por todos independentemente se alguém comeu mais que o outro.
Entretanto, a consequência pode ser ruim a todos. A analogia com a tragédia dos comuns é a seguinte: cada convidado pode pensar da seguinte maneira – eu vejo que todo mundo está pensando em pedir a carne por $20 cada, mas há o camarão por $40. Como somos dez pessoas, se eu pedir camarão, pagarei uma pequena fração adicional, pois os meus $40 serão diluídos em dez. E ainda, se eu pedir carne e outros pedirem um prato mais caro, eu é que pagarei a mais, sem usufruir, e serei o inocente do dia. Entretanto, se todos usarem o mesmo raciocínio, todos pedirão camarão para pegar carona e o desastre é grande – a conta fica muito mais cara do que gostariam (ou do que seria se estivessem sozinhos ou se o sistema fosse outro).
Como conhecemos o comportamento humano, se você fosse dono de restaurante, qual modelo de cobrança adotaria para lucrar mais: a conta única por mesa ou o sistema de comandas individuais? A conta única, é claro.
Medição individual para resolver o dilema
Sabemos que alguns comportamentos humanos são fruto dos incentivos existentes. Por isso, a Teoria dos Jogos não faz julgamento moral; simplesmente aceita o fato de que o autointeresse é uma motivação das pessoas na hora de tomar decisões. O papel da teoria é ajudar as pessoas, por meio de modelos e analogias, a reconhecer essa armadilha e ter alguns insights para sair dela.
Poderíamos evitar situações da tragédia dos comuns se todos mudassem de comportamento e se tornassem mais altruístas. Mas como fazer com que as pessoas não joguem papel no lixo, não roubem colherinhas dos escritórios, consumam menos água, entre outros comportamentos? Uma forma é adotar a estratégia Olho por Olho para punir o adversário quando este o trair, mantendo sempre a colaboração como guia mestre de conduta. Entretanto, essa estratégia é funcional apenas quando você está interagindo com um jogador de cada vez, e não quando se joga com muitas pessoas, como na tragédia dos comuns e outros dilemas sociais.
Uma saída já mencionada é utilizar uma autoridade central para punir seriamente aqueles que se desviam do combinado, mudando os incentivos do jogo. Esse é o objetivo dos governos na construção de políticas públicas, embora não seja uma tarefa fácil. Se é proibido jogar papel na rua, por exemplo, o desafio das autoridades é conseguir fazer o flagrante e multar.
Talvez uma forma eficiente de combater os free riders seja a medição individual. No caso da divisão da conta do restaurante, a medição individual é anotar o consumo em algum lugar ou ter uma comanda individual do próprio restaurante. Num condomínio, é ter um aparelho de medição de consumo de água por apartamento para evitar que o free rider que utiliza muita água pague apenas uma fração via rateio. A palavra‑chave, nesses casos, é accountability, que poderíamos chamar de “responsabilização”.
Nem sempre é fácil. Conhecemos muitos free riders, no escritório ou na faculdade, que se beneficiam do trabalho coletivo e não dão contribuição relevante. Assim, a tragédia dos comuns será sempre o reino dos free riders.
Exemplo mais completo: o aquecimento global
Um dos fenômenos mais nocivos em que podemos observar o problema da tragédia dos comuns é a discussão sobre o aquecimento global, no qual os jogadores são os próprios governos dos países. Esse é um exemplo típico em que o autointeresse causa problemas para todos os habitantes do planeta.
Investir para diminuir o aquecimento global é muito caro para os países, pois são necessárias mudanças de políticas de emissão de gases, sistemas de controle, despesas com métodos alternativos de energia etc. Se meu país gastar uma fortuna e os outros países não, minhas ações isoladas não farão a menor diferença na natureza. Por outro lado, se os outros países o fizerem e o meu não, vou me beneficiar do clima mundial à custa dos demais, sem gastar um centavo.
Um artigo da revista The Economist, “Playing games with the planet” traz o debate sobre o aquecimento global sob a ótica da Teoria dos Jogos. Como em qualquer encontro sobre alterações climáticas, sempre existem políticos que declaram que é “urgente”, “vital” ou “imperativo” proteger o planeta do superaquecimento. E, mesmo assim, poucos governos estão dispostos a resolver o problema espontaneamente. Na prática, o que eles geralmente querem dizer é que é urgente para todos os outros países, exceto para os seus próprios.
Isso é natural, segundo o mesmo artigo. Afinal, todos os países desfrutarão dos benefícios de um clima estável, se eles ajudarem a realizá‑lo ou não. Então, um governo que possa persuadir os outros a cortar emissões de gases de efeito estufa, sem que tenha de fazer o mesmo, obtém o melhor dos dois mundos: evita todas as despesas envolvidas e ainda escapa da catástrofe.
O artigo declarou, na época em que foi escrito (2007), que os mais óbvios free riders são os Estados Unidos e a Austrália, os únicos países ricos que se recusam a pôr um limite em suas emissões. Mas eles estão longe de serem os únicos agressores: a maioria dos países pobres também está interessada em responsabilizar os países ricos em conter o aquecimento global para continuar a poluir.
Onde entra a Teoria dos Jogo
O problema, claro, é que se todos contarem com a ação dos outros, ninguém vai atuar, e as consequências podem ser muito piores – é por isso que podemos ver essa questão pela ótica da tragédia dos comuns
Pessimistas assumem que a resposta internacional à mudança climática terá o mesmo rumo do Dilema dos Prisioneiros. Líderes racionais vão sempre negligenciar o problema, alegando que os outros vão resolvê‑lo, deixando seu país se tornar um free rider. Assim, o mundo está condenado a ser um forno, apesar de o aquecimento global poder ser evitado se todos cooperarem.
A The Economist, no entanto, cita artigo de Michael Liebreich, da empresa de pesquisa New Energy Finance, que se baseia na Teoria dos Jogos para chegar à conclusão contrária. A dinâmica do Dilema dos Prisioneiros, segundo ele, muda drasticamente quando os participantes sabem que jogarão o jogo mais de uma vez. Nesse caso, eles tendem a cooperar para evitar ser punidos por sua má conduta em rodadas subsequentes.
Ao citar o estudo de Robert Axelrod, Michael Liebreich argumenta que a estratégia é mais bem‑sucedida quando o jogo repetido tem três elementos: primeiro, os jogadores devem começar cooperando; segundo, eles devem impedir a traição ao punir o transgressor na próxima rodada; e terceiro, eles não devem guardar rancores, mas sim iniciar novamente com cooperação após a punição adequada. O resultado dessa estratégia deve ser a cooperação sustentável em vez de um ciclo de retaliações.
Liebreich acredita que tudo isso traz lições para os negociadores do clima mundial. Tratados sobre a mudança climática, afinal, não são jogos de uma jogada só. Na verdade, as Nações Unidas estão incentivando seus membros a negociar um sucessor do Protocolo de Kyoto que possua esses elementos da Teoria dos Jogos. Os países que não cumprirem seus compromissos, por exemplo, são punidos com a obrigação de reduzir suas emissões de forma mais acentuada na próxima vez. Mas Liebreich argumenta que também deve haver sanções para os países ricos que se recusam a participar e mais incentivos para os países pobres aderirem (que são isentos de quaisquer cortes obrigatórios)
Liebreich também sugere que o regime global sobre mudança climática deva ser revisto com mais frequência para permitir que o jogo se desenvolva mais rapidamente. Então, no lugar de estipular grandes reduções de emissões a ser implementadas ao longo de cinco anos, como em Kyoto, no novo acordo os países deveriam ter metas anuais. Dessa forma, os governos cooperativos não seriam explorados por muito tempo, enquanto os free riders seriam punidos e forçados a voltar ao rebanho mais rapidamente.
Dilemas sociais
Em certo sentido, vários dilemas são basicamente variações do mesmo dilema, que podemos chamar de dilemas sociais. A cooperação produziria melhor resultado a todos, mas a solução cooperativa não é um resultado facilmente alcançado; há sempre uma traição à espreita.
O Dilema dos Prisioneiros é apenas um dos muitos dilemas sociais com que nos deparamos nas tentativas de cooperar (o mais conhecido e o mais fácil de memorizar). Como variante de um dilema social, vimos que a tragédia dos comuns é um tipo de Dilema dos Prisioneiros jogado por várias pessoas ou por uma população inteira. O esquema de incentivos é o mesmo – é melhor trair – e o free rider se beneficia, usufruindo parte do coletivo sem contribuir, como jogar lixo no chão, roubar colherinhas, poluir o planeta, pagar mais barato no restaurante ou pagar somente parte da água que gasta do condomínio, entre outros. O problema é quando todos agem dessa forma, pois todos perdem.
Uma solução é o equivalente à comanda individual para não dividir a conta do restaurante ou ter medição individual de consumo de água. Unindo os conceitos, da mesma maneira que a estratégia Olho por Olho pode levar à cooperação ao criar a punição, a comanda individual é uma forma de punição ao free rider.
Em diversas obras sobre Teoria dos Jogos e dilemas sociais, você provavelmente irá encontrar outros nomes e variantes de jogos. Como curiosidade, cito alguns:
- O jogo do covarde, no qual cada um tenta empurrar o outro para perto do limite, e cada um espera que o outro vá desistir primeiro.
- O dilema do voluntário, em que alguém deve fazer um sacrifício em nome do grupo. No entanto, se ninguém o fizer, todo mundo sai perdendo. Cada pessoa espera que alguém vá fazer o sacrifício, que poderia ser tão trivial como fazer um esforço para colocar o lixo para fora ou dramático como sacrificar sua vida para salvar outros.
- A batalha dos sexos (battle of sexes), em que duas pessoas têm preferências diferentes, como um marido que quer ir ao estádio de futebol enquanto a mulher prefere ir ao cinema. O dilema é ou compartilhar a companhia do outro ou seguir a própria preferência sozinho.
- A caça ao veado (stag hunt), em que a cooperação entre os membros de um grupo daria uma boa chance de sucesso em um empreendimento arriscado de alto retorno (caçar veados), mas um indivíduo pode ganhar uma recompensa garantida, embora inferior, se romper a cooperação e ir sozinho (caçar coelhos).
Quer saber mais?
Se você não leu, recomendo os artigos introdutórios O Dilema dos Prisioneiros e Como induzir a cooperação.