O dia em que deixei um algoritmo tomar minhas decisões

Leia o relato de uma cientista de computação na revista Wired

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Leia aqui o artigo original. Abaixo é uma resenha.

Lucy Liu, cientista da computação em formação, começou a suspeitar que havia algo fundamentalmente disfuncional em sua rotina. Pequenas frustrações diárias — como andar ao lado de amigos lentos demais na calçada — se somavam a uma sensação mais ampla de que suas decisões estavam sempre aquém do possível. A vida parecia subótima, como se cada escolha feita fosse ligeiramente pior do que poderia ter sido. E, sendo alguém acostumada a pensar em problemas em termos computacionais, ela se fez uma pergunta que carrega tanto humor quanto abismo: e se um algoritmo pudesse tomar decisões melhores que eu?

Esse impulso, ao mesmo tempo cômico e sincero, deu origem a um experimento radical: viver um sábado inteiro regida por um algoritmo de aprendizado por reforço, mais especificamente, uma versão manual e simplificada do Q-learning. O princípio era técnico, mas a aplicação foi quase poética: a cada bifurcação da vida — levantar ou dormir mais, sair ou ficar, comer agora ou depois — Lucy lançava um número aleatório. Se o número fosse inferior a 5 (em 100), explorava uma nova opção. Caso contrário, recorria à “melhor escolha histórica”, baseada na memória afetiva e subjetiva de situações semelhantes.

Essa abordagem imitava a clássica tensão dos algoritmos entre exploração e aproveitamento: buscar novidades ou repetir o que já funcionou? Mas transpor isso para o cotidiano revelou um descompasso. A cada nova decisão, Lucy esbarrava na impossibilidade de medir preferências humanas com a nitidez que a máquina exige. Como comparar, em termos de “eficiência”, uma tarde de leitura densa com o prazer de um cochilo inesperado? Como quantificar o valor de caminhar até um café novo versus atualizar um formulário de doutorado?

Mais do que dificuldades técnicas, surgiram limitações humanas profundas. O primeiro obstáculo foi perceber que nossas decisões raramente são discretas e bem definidas como comandos de um código. Elas são feitas de nuance, hesitação, contexto. Decidir “ir ao parque” não é um ato único: envolve clima, humor, companhia, lembranças. Isso torna a tradução de ações humanas para linguagem algorítmica uma caricatura.

Em segundo lugar, veio a constatação de que a busca por métricas claras tende a distorcer a percepção do que realmente importa. Medir o que é visível — como salário, número de eventos sociais, quantidade de páginas lidas — tem o risco de substituir o que é valioso pelo que é quantificável. Otimiza-se o que pode ser contado, não o que faz sentido.

Mas a fissura mais grave veio da ausência de um norte: otimizar para quê? Felicidade? Eficiência? Crescimento pessoal? O algoritmo exige uma função objetivo clara, mas a vida raramente oferece uma. Viver é um problema mal especificado. E otimizar um sistema cujo critério de sucesso é ambíguo ou em disputa só gera mais ruído.

A experiência chegou ao seu clímax numa cena quase cinematográfica. À noite, cercada de amigos e já parcialmente entorpecida pela leve embriaguez das decisões randômicas, Lucy se viu diante do garçom oferecendo mais sangria. O algoritmo teria dito “não” — ela já havia aprendido com a experiência que mais de duas taças resultava em dor. Mas, sob o critério do prazer imediato, aceitou. Escolheu a felicidade em vez da eficiência. No dia seguinte, a ressaca veio como epílogo inevitável. Físico e simbólico. A madrugada foi subótima em todos os sentidos.

E foi justamente nessa dor que emergiu a moral do experimento. Lucy não rejeita os algoritmos. Ela os admira. Sabe que, dentro do escopo certo, eles são brilhantes. Mas reconhece que tentar viver segundo os princípios da inteligência artificial revela um paradoxo fundamental: a vida humana não é um problema de otimização. É uma sucessão de decisões onde os critérios são vagos, os pesos mudam e o que é “melhor” hoje pode ser exatamente o que se quer evitar amanhã.

No fim, o algoritmo não fracassou por ser mal programado. Fracassou porque fez exatamente o que deveria: expôs o vazio de um sistema que busca melhorar algo sem definir o que é bom. Ele funcionou como espelho — um espelho frio, lógico, mas honesto — que devolveu a pergunta essencial: o que você está tentando viver bem, exatamente?

Lucy nos deixa com essa provocação. Que talvez o valor do algoritmo não esteja em responder, mas em lembrar que antes de otimizar, é preciso escolher o que merece ser preservado. E essa escolha não é aleatória. Nem técnica. É moral. FIM.


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