Estratégia não nasce de um modelo. Ela depende de como as pessoas pensam.
Escrito em parceria com Eliza Albuquerque, colega do Doutorado da Fundação Getúlio Vargas.
Publicado originalmente na Coluna Gestão e Negócios do Estadão
O CEO decidiu que era hora de rever a estratégia. O mercado mudava rápido e a empresa precisava se preparar para os próximos anos. Para isso, organizou um encontro fora do escritório, longe das distrações do dia a dia. O cenário escolhido — a Serra da Mantiqueira — oferecia tranquilidade e um convite à reconexão com a natureza. Mas, na prática, os participantes passariam o tempo em uma sala de conferência com vista para as montanhas. Além da pauta estratégica, o evento também serviria para fortalecer os laços da equipe.
Um dos pontos centrais do encontro era a revisão do modelo de negócios, usando o Canvas, ferramenta criada por Alex Osterwalder em sua tese de doutorado e adotada por empresas no mundo inteiro. Para guiar a atividade, a empresa contratou um facilitador externo. Post-its foram distribuídos e a participação, incentivada. A expectativa era que a estrutura ajudasse a tornar a conversa mais produtiva.
Mas, à medida que as ideias surgiam, a dinâmica se mostrou mais difícil do que o previsto. Um a um, os participantes caíram em armadilhas comuns em discussões estratégicas: falácias argumentativas e falta de ambivalência.
O primeiro conflito veio quando o diretor financeiro propôs revisar os custos para garantir sustentabilidade. Antes que ele pudesse explicar os dados, o diretor de marketing rebateu com ironia, acusando-o de sempre querer cortar gastos. O foco saiu do argumento e foi para a pessoa. A conversa desviou para inovação, sem considerar a análise. Foi um caso clássico de falácia ad hominem, quando se ataca quem fala, em vez do que é dito.
Em seguida, a diretora de operações sugeriu investir mais em canais digitais para reduzir a dependência dos distribuidores físicos. A diretora comercial reagiu dizendo que isso levaria ao fechamento de lojas e demissões, embora ninguém tivesse proposto isso. A discussão se deslocou para um cenário exagerado, criado para ser facilmente criticado. Foi uma distorção do argumento original — um caso típico da falácia do espantalho, em que a ideia é deturpada para ser mais facilmente refutada.
Ao discutir fontes de receita, o CEO sugeriu testar um modelo de assinaturas. A vice-presidente de estratégia apoiou a ideia citando uma empresa de referência. Segundo ela, se funcionava lá, poderia funcionar ali também. Mas ninguém questionou se os contextos eram comparáveis. A decisão se apoiou na reputação de quem já adotou o modelo, sem avaliar as diferenças do caso. Foi um exemplo claro de falácia do apelo à autoridade, em que se aceita uma proposta apenas porque foi adotada por alguém considerado bem-sucedido.
Na hora de falar sobre crescimento, a equipe se dividiu: parte queria expandir para novos mercados, parte preferia consolidar a base atual. Cada grupo defendeu sua proposta como a única viável, sem examinar os méritos e riscos de cada alternativa. O facilitador tentou provocar reflexão, mas a rigidez das posições falou mais alto. O silêncio que se seguiu mostrou a ausência de ambivalência — a capacidade de reconhecer que mais de uma abordagem pode fazer sentido ao mesmo tempo.
Ao final do dia, o Canvas estava completo. Mas o sentimento não era de conclusão. A ferramenta organizou a conversa, mas não garantiu que ela fosse racional nem produtiva. O encontro mostrou que frameworks ajudam a estruturar ideias, mas não evitam distorções e conflitos. A qualidade da estratégia depende menos da ferramenta usada e mais de como as pessoas discutem e analisam os caminhos possíveis.
O facilitador sabia que a discussão teria rendido mais se o grupo prestasse atenção à forma de argumentar. O CEO percebeu que, apesar do esforço para criar uma conversa estruturada, o verdadeiro desafio era outro: promover um ambiente onde decisões sejam tomadas com base em raciocínio crítico e colaboração genuína. Ferramentas como o Canvas são úteis. Mas, no fim, estratégia não nasce de um modelo. Ela nasce do modo como as pessoas pensam, discordam e decidem juntas.