Afinal, razão significa racionalidade ou motivos?
“Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração | E quem irá dizer que não existe razão“. A emblemática frase de Renato Russo, em Eduardo e Mônica, não é apenas um verso musical, mas um enigma que nos convida a refletir sobre a complexa fronteira entre razão e sentimento.
Existe razão nas emoções? Há lógica no coração? Tentar racionalizar os sentimentos distorce sua essência? Sentimos antes de compreender. Amamos antes de entender o amor. Sofremos antes de reconhecer a dor. Mas, inevitavelmente, buscamos explicações. Queremos saber por que sentimos o que sentimos. Essa busca pela razão é uma tentativa legítima de entender ou apenas um esforço para impor ordem ao que não se submete à lógica? Afinal, a razão pode, de fato, explicar os sentimentos?
Para compreender melhor essa questão, vale observar a própria palavra “razão”. Em inglês, o termo reason possui um significado mais amplo do que em português, o que nos ajuda a enxergar a complexidade do conceito.
Como verbo, to reason significa raciocinar, ou seja, processar informações logicamente e chegar a conclusões fundamentadas. Como substantivo, reason (razão) pode indicar tanto racionalidade, a capacidade de raciocinar logicamente e estruturar pensamentos. Ainda como substantivo, também significa motivo ou causa, funcionando como uma justificativa para algo que aconteceu. Basta lembrar a frase: “Ela tem suas RAZÕES para agir como agiu”. Assim, qual dessas interpretações se aplica melhor aos sentimentos: racionalidade ou motivo?
Se tomarmos “razão” como racionalidade, a pergunta passa a ser: sentimentos podem ser analisados logicamente? Nesse caso, entramos no campo do pensamento estruturado. Raciocinar significa buscar coerência e lógica: toda argumentação precisa ter solidez, suas premissas devem estar conectadas e sua coerência, rigorosa. Mas os sentimentos não obedecem a esse princípio. O amor não nasce de uma premissa racional. A tristeza não se forma a partir de uma equação. As emoções seguem outra lógica, guiadas por impulsos e subjetividades.
Se, no entanto, pensarmos “razão” como justificativa, a questão muda: os sentimentos possuem causas que podem ser identificadas e explicadas? Aqui entramos no campo da causalidade. A pergunta deixa de ser se os sentimentos podem ser analisados logicamente e passa a ser se podem ser justificados. De novo, estamos buscando “as RAZÕES porque ela agiu daquele jeito”, mesmo sendo razões emocionais. Essa é a abordagem comum na psicologia e na psicanálise.
Quando alguém inicia uma terapia, seus sentimentos frequentemente aparecem de forma fragmentada e confusa. O paciente relata emoções intensas, pensamentos desordenados, memórias dispersas. Não há ali um discurso lógico, apenas um emaranhado de sensações. O terapeuta não impõe racionalidade; ele não é um juiz da lógica, mas um arqueólogo das razões. Ele busca o sentido por trás daquilo que parece sem explicação. Pode apontar, por exemplo, que certos sentimentos vêm de experiências passadas: um medo pode ser consequência de um abandono, uma insegurança pode ser fruto de uma criação rígida, uma ansiedade pode estar ligada a um ambiente controlador.
Esse tipo de explicação traz alívio. Um sentimento que parecia aleatório agora tem uma origem. Ele passa a fazer sentido. Mas isso significa que encontramos a verdadeira causa ou apenas uma narrativa reconfortante para dar coerência ao que sentimos? É aí que começa a confusão. Por mais que seja artístico e romântico citar David Hume e sua famosa frase “a razão é escrava das paixões”, isso não esclarece muito, apenas reforça a ideia de que a racionalidade não governa nossas decisões de maneira deliberada.
Na prática, a mente humana busca ordem. Não suportamos o caos. Sempre que há uma lacuna em nossa compreensão, tentamos preenchê-la com sentido. O fato é que estamos sempre racionalizando o irracional. Queremos encontrar padrões, mesmo que bizarros e contraproducentes. Queremos entender o que sentimos. Queremos acreditar que há um motivo por trás de cada emoção. Se temos um comportamento que nos incomoda, buscamos justificativas. Se um pensamento nos perturba, procuramos uma explicação.
Voltamos, então, à questão inicial. A razão pode explicar os sentimentos? Podemos buscar causas e encontrar padrões, mas nunca teremos certeza se estamos realmente compreendendo o sentimento ou apenas organizando-o de forma que nos pareça aceitável. Talvez essa seja uma pergunta impossível de responder de maneira definitiva, pelo menos em um artigo curto como este.
Assim, fica o convite para refletirmos cada vez mais sobre os sentimentos. No fim das contas, compreender-se é um processo deliberado de reflexão e raciocínio, mesmo que esse raciocínio não se encaixe perfeitamente nas definições clássicas de lógica e razão. Se você não quiser chamar isso de “racionalidade”, pode usar a velha expressão “autoconhecimento”. O que importa é ir até o fundo e refletir bastante.