Spotify pode estar certo, mas falha na analogia

A analogia com crianças é limitada e simplista

A analogia com crianças é limitada e simplista

Este ano foi marcado por debates intensos sobre o melhor modelo de trabalho, variando desde a abordagem 100% presencial da Amazon, passando por modelos híbridos adotados por várias empresas, até o trabalho 100% remoto promovido pelo Spotify. Os artigos anexos ilustram bem essa discussão.

A Amazon optou por exigir o retorno integral dos funcionários ao escritório, com uma jornada presencial de cinco dias por semana. Essa política rígida tem sido amplamente criticada por especialistas, que apontam sua falta de visão e apego a práticas de gestão ultrapassadas. A decisão é interpretada como uma dificuldade em se adaptar às transformações trazidas pela pandemia, ignorando lições valiosas sobre produtividade e bem-estar. Segundo os críticos, a produtividade não depende da presença física, mas da organização e coordenação eficazes do trabalho.

Os defensores do trabalho remoto argumentam que políticas inflexíveis afastam talentos, especialmente mulheres. Um estudo da Upwork revelou que 63% dos executivos que adotaram políticas semelhantes observaram uma saída desproporcional de colaboradoras, o que impacta negativamente a produtividade. Em um mercado de trabalho no qual 87% dos profissionais preferem modelos flexíveis, a inflexibilidade da Amazon é arriscada.

Por outro lado, o Spotify exemplifica como uma abordagem flexível pode beneficiar tanto os colaboradores quanto os resultados da empresa. Desde 2021, a companhia mantém sua política de “trabalhar de qualquer lugar“, permitindo que os funcionários escolham onde e como preferem trabalhar. Como a empresa ressalta: “Trabalho não é um lugar para onde você vai; é algo que você faz.”

A diferença nas abordagens da Amazon e do Spotify destaca uma questão central: confiança e inovação na gestão. Enquanto a Amazon adota uma postura de controle e rigidez, o Spotify valoriza relações baseadas na confiança, oferecendo liberdade para que os funcionários escolham o ambiente em que são mais produtivos.

O CHO (Chief Human Resources Officer) do Spotify declarou em entrevistas: “Nossos colaboradores não são crianças.” Embora a afirmação busque transmitir confiança e autonomia, a analogia utilizada é limitada e simplista ao abordar a complexidade do debate entre trabalho remoto e presencial. Comparar profissionais a “crianças” que necessitam de supervisão direta ignora os objetivos mais amplos por trás das políticas de retorno ao escritório.

Empresas como a Amazon justificam suas decisões com base em fatores estratégicos e não por falta de confiança nos colaboradores. São quatro aspectos principais que respaldam o trabalho presencial, sem relação com “supervisão infantil”:

  1. Integração cultural: A convivência diária no ambiente físico fortalece os valores organizacionais, promovendo senso de pertencimento e alinhamento estratégico entre os colaboradores.
  2. Colaboração espontânea: O escritório é um espaço propício para conversas informais, como durante o café ou o almoço, que frequentemente geram ideias inovadoras.
  3. Eficiência na comunicação: Questões simples, que poderiam demandar múltiplas trocas de mensagens ou reuniões virtuais, são resolvidas rapidamente quando as pessoas estão no mesmo ambiente.
  4. Conexões interpessoais: O contato direto facilita a construção de laços emocionais e relacionais, essenciais para fomentar confiança, empatia e cooperação entre as equipes.

A analogia do Spotify falha ao não reconhecer essas nuances. Ao caracterizar o trabalho presencial como uma forma de supervisão infantilizada, a declaração apresenta três problemas centrais. Primeiro, ela é redutiva, desconsiderando razões legítimas para preferir o modelo presencial. Segundo, é generalista, ao sugerir que o trabalho remoto é superior em todas as circunstâncias. Terceiro, é polarizadora, ignorando a possibilidade de coexistência harmoniosa entre os dois modelos. Assim, a declaração perde a oportunidade de reconhecer que diferentes organizações, equipes e culturas possuem necessidades distintas.

Curiosamente, sem tanto alarde midiático, o próprio Spotify reconhece os desafios do trabalho remoto em termos de colaboração. Para contorná-los, a empresa adota iniciativas criativas que incentivam o engajamento presencial, como eventos musicais e a “Core Week”, uma semana em que as equipes se reúnem para discutir estratégias e reforçar conexões interpessoais. Ou seja, até mesmo o Spotify entende que flexibilidade e presença física podem — e devem — coexistir de maneira estratégica. Pois é…

Fontes:

https://finance.yahoo.com/news/spotify-hr-chief-says-remote-100021103.html